domingo, 4 de julho de 2010

Sobrevida de luxo (vivendo no limite)

Todos os dias quando toca o despertador, Luisa imagina, sem muito entusiasmo, como será seu dia. Prepara o café da filha enquanto veste apressada seu uniforme. Deixa a menina na escola e avança vários sinais vermelhos, mas o relógio ainda é mais rápido. A mesa do trabalho continua do mesmo modo que deixou no dia anterior. Vários recados pedem retorno, há uma pilha de papeis para serem conferidos e uma planilha de custos solicitada no final do expediente já está a sua espera. Enquanto passa os olhos nos e-mails, o telefone começa a tocar. Luisa é acessora contábil há mais de dez anos e está acostumada com essa rotina: cobranças e afazeres que não terminam nunca, solicitações de última hora, cafezinhos, ligações que faz e recebe... Nem tudo pode ser planejado, principalmente os problemas pessoais que, por mais que se tente adiá-los, eles não agendam horário para visita.


Quando adolescente, Luisa praticava diversos esportes (patinação era o seu favorito), estudava o suficiente para ser aprovada, eventualmente namorava e saia com as amigas para dançar sempre que seu pai permitia. Todo verão, ao receber o boletim escolar, corria para casa, preparava a mochila e aproveitava ao máximo suas férias na praia ou no sítio dos avós. Luisa tinha uma vida invejável, pois tinha tudo o que uma pessoa desejava: bons pais, situação financeira estável, várias amigas e saúde perfeita. Nesta época, era possível equilibrar todos os deveres com as atividades que mais lhe traziam prazer.

Tão rápido chegou o dia da festa de formatura quanto ocorreu seu casamento. O futuro promissor agora era o presente. O primeiro trabalho não foi tão rentável quanto desejava, mas foi o suficiente para pagar as despesas básicas, pelo menos durante algum tempo. Queria uma casa em vez de um apartamento, um carro zero em vez de um razoavelmente rodado. Gostava de vestir roupas e sapatos de marca, assim como bolsas caras. Também não dispensava um bom perfume. Essas preferências foram tornando-se cada vez mais importantes e essenciais para a vida de Luisa, tendo sido necessário mudar de emprego algumas vezes, não em busca de um trabalho prazeroso, mas sim num trabalho rentável.

Os momentos de diversão e tranqüilidade foram sendo substituídos, silenciosamente, por longos e estafantes dias. Luisa, muitas vezes, chegava tarde em casa e, no dia seguinte, já estava diante do computador, respondendo e-mails. Mas precisava daquele emprego, ela pensava, pois tinha muitas contas e planos que só poderiam ser atingidos se ganhasse um bom salário. E isso ela já tinha alcançado. Luisa justificava o excesso de trabalho pelo elevado índice de desemprego (sua referência era a leitura do jornal de domingo com enormes chamadas apontando a quantidade de empresas falidas e o crescimento alarmante de desempregados), e acreditava poder garantir o emprego que tinha em função da sua dedicação exemplar. De fato, Luiza fora promovida e ganhou alguns prêmios por tanto empenho. Por outro lado, perdia momentos preciosos com seu marido e sua filha, esta, nascida no segundo ano de casamento. Acreditava que, apesar de não poder estar presente na rotina deles como deveria, conseguiria compensar este sacrifício comprando um novo jogo de sofás, uma TV de última geração ou um quarto novo para a filha. E a cada compra, outros objetivos de consumo eram estabelecidos. Planos de viagem ou simplesmente descanso não estavam na lista de metas a curto prazo.

No início de uma tarde quente de fevereiro, uma ligação interrompeu a reunião mensal da empresa. Não pôde conter as lágrimas quando recebeu a notícia do falecimento de seu marido em um acidente de trânsito. Conseguia lembrar dele, neste mesmo dia, durante o café da manhã, reclamando da rotina, referindo exaustão e alguma culpa por não ter tempo para nada. Talvez pudessem fazer uma viagem curta, desligar os celulares e o notebook, dizia ele. Descansar em um hotel e passear com a filha. Se algumas contas fossem adiadas, poderiam relaxar um pouco. Luiza não teve tempo de avisá-lo que receberia um cliente importante na próxima segunda-feira e que precisaria trabalhar no sábado e, talvez, também no domingo. Realmente, ela não iria trabalhar neste fim de semana.

Luisa estava presa numa corrida de ratos: acreditava que, por mais que trabalhasse, todo o dinheiro que ganhava não era o suficiente, nunca sobrava tempo para diversão ou simplesmente, sequer cogitava diversão sem dinheiro. E, nem a perda do marido lhe fez despertar para a vida restrita que levava. Na verdade, desde que passou a integrar o mundo como um indivíduo adulto e independente, Luisa vinha sobrevivendo no limite de suas capacidades físicas e intelectuais, trocando o necessário pelo supérfluo, tornando-se uma escrava do século XXI. Escrava do pânico do desemprego, e ao mesmo tempo, vítima de um modelo consumista que, implicitamente lhe motiva a consumir mais do que seu dinheiro pode comprar e mais do que é preciso para viver dignamente. Coisas que não precisa pagar para ter uma boa vida. Compartilhar do crescimento de sua filha, dividir o sofá vendo um filme com a família, passear no parque ou na beira do rio e tomar um banho de sol. Adotar um cachorro, almoçar com os parentes no fim de semana ou ouvir as músicas favoritas. Jogar futebol, ler um livro de conto de fadas ou ensinar a filha a amarrar os sapatos. Nada disso pode ser quantificado em moeda, e Luisa era incapaz de perceber o real valor de coisas simples e fundamentais. Coisas que seu dinheiro nunca conseguirá comprar porque não são vendidas em lojas.

Como convencer uma sociedade inteira de que todo desenvolvimento tecnológico, alimentos saudáveis e conforto existem para propiciar uma vida digna e com qualidade? Como acabar com a histeria que faz com que as pessoas queiram ter mais e mais, ao passo que nada significa outro ser humano não ter o que comer, o que vestir ou, inclusive, onde morar? Nesse ponto, não parece haver diferença significativa entre a vida limitada que Luisa e um mendigo qualquer levam. Exceto pelo fato de a forma restrita de Luisa levar sua vida ter sido uma escolha desnecessária. Uma escolha da sua geração.

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