domingo, 4 de julho de 2010

O Encarte

Os primeiros passos que iniciam meu dia acontecem sempre depois de um curto desabafo que lamenta o toque precoce do despertador. Todo o início de manhã, eu me pergunto se já está na hora de levantar, pois tenho uma sensação real de que recém fui dormir. Nenhuma relação com sintomas depressivos ou insônia, apenas um puro e natural sono humano. O ritual segue com meu andar arrastado em direção ao banheiro, acompanhado da Yoshi, minha gata siamesa que, ironicamente, fica muito feliz em me ver de pé. Enquanto eu sento no meu trono de rainha proletária, ela esfrega seu focinho na minha perna, pedindo comida e atenção; eu a afago ao mesmo tempo em que procuro algo para ler.


Gosto de ler no banheiro. Muitas pessoas aproveitam o tempo perdido no WC para ler no jornal as primeiras notícias do dia, ou, quem sabe, ler um livro de auto-ajuda. Eu prefiro folhetos e encartes de lojas. Ofertas de supermercado, de roupas e de eletrodomésticos são interessantes e, durante algum tempo, distraem-me carregando minhas baterias para o dia que começa. Hoje, eu avistei um encarte tipo revista da Polishop que atraiu muito minha atenção. Imediatamente eu comecei a folheá-lo, buscando ver naquelas páginas os produtos milagrosamente úteis para o dia-a-dia de qualquer adulto preguiçoso que eu só vejo nas propagandas mal dubladas da TV.

Iniciei meu dia imaginando como seria bom cozinhar alimentos nas grelhas George Foreman, ou como seria prático alisar meus cabelos com as pranchas emissoras de milhões de íons que protegem e dão brilho aos fios capilares. Eu estava hipnotizada. Digo isto porque eu já estava vendo o preço dos produtos e imaginando se as parcelas cabiam ou não no meu orçamento. Continuei minha lavagem cerebral de consumidora com tendências compulsivas quando cheguei à seção dos corpetes. Usar um modelador que corrige as imperfeições do corpo por R$69,00 era um sonho muito fácil de realizar. Poder usar aquela calça que não serve mais ou usar uma blusa mais justa sem sentir desconforto algum elevaria às alturas minha auto estima. É disso que preciso, pensei. E continuei pensando por algum tempo até que a Yoshi mordeu minha mão. Ela sempre faz isso quando quer chamar a atenção, e já fazia uns vinte minutos, pelo menos, que eu estava olhando aquele encarte; ela estava olhando para mim e implorando por ração. Deixei de lado, forçadamente, o corpete que causaria inveja na Barbie e fui alimentar o bicho. Vesti-me, saí para o trabalho e continuei com os pensamentos na Polishop.

A distração do início da manhã acompanhou-me por todo o expediente. Não pude evitar observar as barrigas que passavam por mim. Eu não via rostos ou corpos, que dirá pessoas. O que via eram suas barrigas e indagava-me se o corpete da Polishop poderia melhorar a aparência dos outros assim como eu imaginava que melhoraria a minha.

Ao voltar para casa, resolvi especular a minha imagem projetada diante dos olhos alheios. Peguei a revista e apresentei o produto ao meu marido. Não teria problemas em ir direto ao assunto com ele, mas resolvi iniciar o diálogo comentando sobre o bom resultado que traria o uso de um modelador corporal a minha postura, só para ver como a conversa seguiria. Justifiquei meu interesse pelo fato de estar sentindo-me um pouco curvada, provavelmente devido ao trabalho integral com computadores e tal. Ele, muito educadamente, parou de digitar um e-mail, virou-se para mim, pegou a revista e olhou o produto. “É, parece bom mesmo”. Processei a mensagem dele por infinitos segundos e quando percebi, ele havia retomado a digitação.

Lá estava eu, parada, diante dele, com o encarte nas mãos, pensando no que eu realmente esperava ouvir. Isto porque odiei o comentário inútil feito por ele. Se ele tivesse dito para eu comprar porque precisava do acessório, será que eu iria me magoar? É muito possível e provável que sim. Bem, se ele tivesse dito que, pelo fato de eu desejar fazer esta compra, então já devia ter avaliado a real utilidade do item, logo deveria comprá-lo. Péssima resposta! Ele podia ter dito que se eu já estivesse convencida, qualquer comentário ou sugestão que não coincidisse com o meu desejo seria prontamente rejeitado. Acho que ele me conhece bem. Quem sabe algo como: “Você está ótima, isso é bobagem!”... Pior ainda. Ele já me disse isso antes e eu não fui convencida, ele, pessoa inteligente que é, não ousaria tentar a mesma resposta comigo. Mas então, o que eu queria ouvir de fato?

Acho que não havia nada de objetivo que eu quisesse ouvir naquela situação. O que na verdade eu queria mesmo era não precisar do maldito corpete, pois seria reconhecer que estou acima do peso e que sou incapaz de recuperar a forma física de alguns anos atrás, comendo menos ou fazendo exercícios, como deveria fazer. Eu, várias dúvidas, o encarte, o corpete, o cartão de crédito, a barriguinha e a busca pelo impossível: a crise dos quase trinta anos deve ter chegado. Que desespero! Sim, deve ser isso porque eu estou sofrendo imensuravelmente uma dor que inexiste, que foi plantada na minha cabeça por uma campanha publicitária mercenária à base de mensagens subliminares que buscam pessoas com o meu perfil, prontas para caírem na isca da busca pela beleza eterna.

Eu não pude evitar: problematizei a situação a ponto de ocorrer, no meu pensamento, um conflito entre o que sou e o que eu desejo que os outros vejam. Uma incompatibilidade entre o que fui convencida a desejar e entre o que preciso de fato. A realidade é tão obvia que causaria graça se não fosse uma desgraça internalizada na minha mente. Sou uma mulher comum, saudável, de estatura mediana e muito longe de estar gorda como sugerem aquelas modelos do antes e depois do corpete. Mas o apelo comercial é irresistível e minha lucidez parece abalada. Como eu queria ser uma pessoa “normal” nesta sociedade consumista. Se eu fosse este ser alienado, eu já teria ido até a loja e, sem nenhum centavo, teria comprado o grill, a prancha para cabelos e o corpete, pago no cartão de crédito e pronto. Teria voltado para a casa orgulhosa das minhas sacolas recheadas de prazer, satisfação e status. E o melhor disso tudo, sem sentir culpa alguma.

Deixei o encarte de lado. Peguei a Yoshi no colo, apertei-a contra meu peito e murmurei algumas palavras suaves no ouvido dela. Este gato é o ser vivo que conheço mais verdadeiramente feliz com a vida que tem: ela pede comida sem vergonha alguma, come à vontade e sem peso na consciência, não precisa trabalhar, só desperta do sono quando quer, entende apenas o que é necessário para sua sobrevivência, não tem consciência nem crise existencial, é muito gorda e ninguém consegue resistir a ela. Que inveja!

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