sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Yearbook e minha emotividade sazonal

Estava pensando em escrever sobre algo que pudesse ser publicado na próxima edição da Neuroze, mas apesar de muitas idéias e assuntos dos quais quero falar, não está fluindo nada além da forte influência do ano que está terminando. Eu bem que tentei escrever sobre outro assunto, pois acredito que tratar das motivações e esperanças renovadas pelo ano que chega é muito clichê, além do mais, parece que tudo o que já podia ser refletido sobre isso já foi dito. Se este escrito remeter a uma inevitável emotividade sazonal, eu não pude evitar, então, por favor, minhas desculpas. Mas eu sei que alguns acontecimentos que tive só puderam ser concluídos ou terão início ao mudar o calendário. E agora, esta e a minha maior motivação.
Eu só pude aceitar que 2010 foi excelente, ao menos para mim, com certeza. Melhor do que o ano anterior: arrastado e envolto de decepções que somente estão sendo superadas hoje.
Eu afirmo que foi melhor porque me tornei proprietária de um apartamento que conheci no dia em que me mudei. Melhor porque eu pude assistir ao show que esperei por toda a minha existência racional, a banda que mais influenciou a minha vida: Green Day. Melhor porque redescobri uma antiga amizade, a qual desacreditava ser possível resgatar, que me fazia falta e hoje faz bem tê-la de volta. Melhor porque consegui silenciar no momento certo e ser paciente o suficiente para impedir que outra importante tivesse fim. Melhor porque tenho mantido relações de proximidade com os lados opostos da minha família partida. Melhor porque descobri que ainda posso fazer música, o que eu tinha enterrado bem fundo junto com todos os sonhos não concretizados. Melhor porque eu enxerguei o medo, mas não desisti: passei pelos processos seletivos que me tornaram aluna da escola de música do Projeto Prelúdio, do IFRS. Melhor porque o esforço e dedicação das manhãs de sábado, das incontáveis horas escrevendo, redigindo, corrigindo e me doando às páginas em branco revelaram uma pessoa que desconhecia ser. Melhor porque descobri haver muitas histórias, as quais consigo enxergar e dar sentido, e sei que posso escrever tantas outras quantas quiser, no plano da imaginação ou no mundo real. Melhor porque o autoconhecimento é a chave que está libertando-me do pior inimigo que tenho: eu mesma.
Este resumo fez 2010 ser tão bom, ao menos, esta é a impressão que tenho neste exato momento. Jamais imaginaria fazer 30 anos não se tornar uma tragédia, na verdade pode ter sido o que eu precisava para responder de vez Uma pessoa bem melhor, música que escrevi em 2004 . E foi perfeito porque pude viver tudo isso em companhia do ácido humor divertido de meu esposo ao som do ronronar cheio de carinho da Yoshi.
É por tudo isso que, apesar de o meu texto parecer egocêntrico e desnecessário para qualquer um que leia-o além de mim, agora ele é o ano que tive e a pessoa que me tornei. E isso me motivou a convidá-lo para refletir um pouco sobre alguns pontos.
Você tem feito valer a pena cada manhã que deixa sua casa para trabalhar?
Você está focado enaltecendo seus problemas ou está, neste momento, comemorando suas conquistas?
Você está no conforto do lamento esperando por um milagre ou está fazendo algo que poderá se tornar real no próximo ano?
Eu conheço diferentes pessoas, mas as poucas perguntas que fiz podem definir a todos nós.
QUAL DELAS É VOCÊ?
Tenhamos um excelente ano.

A música que respondi em 2010.

Uma pessoa bem melhor

Se eu conseguisse reverter
Todo ódio que eu sinto em alguma coisa boa,
Talvez...
Se eu conseguisse te dizer
O que penso de verdade e não apenas o que quer ouvir.
Se eu conseguisse descrever
O que sinto neste instante,
O modo que me trata me reduz a quase nada.
Se eu conseguisse esquecer
A metade do que vejo,
Digo,
Falo.

Eu seria
Uma pessoa bem melhor.

domingo, 4 de julho de 2010

Dois velhos, bando de pombos e intolerância

“Os pombos são iguais aos ratos, só que com asas.” Maira ouviu esta expressão anos atrás e nunca mais esqueceu. Aprendeu que estes animais são transmissores de doenças diversas e devia ser este o motivo pelo qual geração do século XXI perdeu o encanto e glamour de épocas passadas. Uma das cenas que vinha a sua cabeça era o clássico vôo de centenas deles, ao mesmo tempo, quando casais aproximavam-se, em praças públicas, próximo a fontes d’água. As crianças adoravam pássaros e, para elas, era irresistível correr afoitamente, em direção aos pombos, que inevitavelmente tentam escapar dos pequenos humanos, criando ondas com o movimento de suas asas no ar. Lembrava ainda que o símbolo mundialmente conhecido para representação da paz era a imagem de uma pomba branca de asas abertas.


Maira aguardava o ônibus que a conduzia até a escola, todos os dias, embaixo de um viaduto, por volta das sete horas da manhã. Pessoas de lugares diferentes caminhavam de um lado para outro ou aguardavam ao seu redor, também, pela chegada de seus ônibus. E, entre um cigarro fumado, uma conversa ao celular ou o amontoado de veículos, uma senhora, muito velha, descia as escadas que davam acesso à calçada onde a estudante, com uma mochila enorme nas costas, de pernas entreabertas, encostada numa mureta, bocejava despreocupadamente.

A idosa, que Maira apelidou involuntariamente de Senhora dos Pombos, descia uma escada sem corrimão de uns quinze degraus, todas as manhãs. Com muita dificuldade, ela apoiava seu corpo cansado numa muleta, com um dos braços. No outro, carregava uma sacola plástica. Sempre que Maira avistava a muleta, não conseguia evitar um sentimento de angustia, pois a idosa mal conseguia manter-se de pé. Era atordoante vê-la com seus dois braços ocupados, arrastando-se, tremendo-se inteira. Cada passo que ela dava levavam longos segundos. Muito provavelmente para ambas: a Senhora dos Pombos porque buscava forças do fundo da alma para não cair; Maira porque acompanhava atentamente aqueles movimentos, torcendo para que ela não escorregasse e sofresse um acidente. Então, a Senhora dos Pombos abria a sacola e atirava aos pássaros a quirela que trazia consigo, ao lado de uma banca de flores, embaixo da ponte onde Maira e dezenas de pessoas esperavam suas conduções. Maira tentava evitar, mas era impossível não sentir muito desgosto pelo movimento dos pombos, batendo suas asas e espalhando poeira, penas e sujeira. Provavelmente com muitos fungos, bactérias e microorganismos que transmitem doenças. Aquelas doenças que falam na televisão e por este motivo é que pedem para que não alimentem pombos. Então, a pobre velha esboçava um sorriso, meio tímido, meio satisfeito. Após, seguia em frente, arrastando-se, muito lentamente, até a próxima praça onde continuaria a distribuição de quirela aos pombos, até desaparecer entre os transeuntes e a paisagem.

As pessoas permaneciam imóveis assistindo a cena sem proferir uma única palavra. Algumas esboçavam um olhar de condenação semelhante ao de Maira, mas nada diziam. Sabia que a situação não era tão simples de ser resolvida: a velha aparentava ter, pelo menos, uns noventa anos. Estava visivelmente debilitada e abandonada (nunca tinha visto a infeliz conversar com alguém, muito menos, estar acompanhada). Sua principal e talvez única ocupação fosse a de alimentar estes bichos, diariamente, um compromisso sem retorno financeiro para o qual se dedicava, provavelmente, apenas para sentir alguma utilidade como ser vivo sem ocupação definida. Então, mais do que a possibilidade de transmissão de doenças, Maira preferia resguardar-se e nada comentar, em respeito a uma pessoa que não devia valer nada para ninguém além dos pombos do Centro gelado de Porto Alegre. Não tinha coragem de dizer uma única palavra que condenasse o ato da frágil idosa, por mais isso que fosse de encontro às recomendações básicas de saúde e, apesar de Maira saber ter plena razão em defender um direito que julgava ser seu, mesmo assim, hesitava. Sentiria muita tristeza em tirar o quase nada do que sobrou àquela velha. Na realidade, sentia uma profunda e sincera pena da Senhora dos Pombos. “O ônibus chegará logo e isso deixará, em breve, de ser uma preocupação nos meus pensamentos.”, afirmava a estudante para si mesma. Outra manhã começava e, a alimentação dos pombos se repetia, como um ritual sagrado a ser cumprido. Sabia a garota que nada de novo, novamente, aconteceria. A velha debilitada, os passos fracos, a escada alta, a muleta desgastada, a quirela esfarelada, a centena de pombos sujos, o ônibus chega em seguida: Fim! Com o olhar Maira seguia a Senhora dos Pombos quando percebeu um senhor, logo atrás da idosa. Ele também sugeria, pela aparência física, ter uma idade avançada, notável pela pele enrugada do rosto e pelos cabelos bem brancos. Assim como Maira, o velho acompanhava os lentos movimentos da Senhora dos Pombos. Ele vestia um longo casaco de lã escuro e de braços cruzados, prestava muita atenção nos movimentos que aconteciam. A idosa atirou o milho quebrado aos pássaros e venceu, mais uma vez, a probabilidade de queda iminente da escada ao atingir vitoriosamente o chão firme. Enquanto isso, o bando de pombos grunhiam, ciscavam e comiam tranquilamente o farelo. Num piscar de olhos, Maira sentiu seu coração pular quando os pássaros, repentinamente, começaram a se debater, tipo reação em cadeia, e com o barulho forte das asas que batiam tentando projetar vôo ao alto dos prédios, que se misturava ao trânsito e ecoava no concreto dos edifícios e do viaduto onde se encontrava.

Todos os movimentos e olhares das pessoas embaixo daquele viaduto tinham a mesma direção. O velho, se debatia, resmungando alguma coisa e, movimentando braços e pernas, espantava os ratos de asas, que se misturavam aos veículos e a gente que passava ou estava ali, parada.

A Senhora dos Pombos gritava ao velho alguma coisa que Maira entendia ser ruim, pelos gestos e expressões faciais de ódio e raiva que via em seus rostos, embora não conseguisse compreender nenhuma palavra. Ele, do alto da escada e de sua razão, respondia outras grosserias.

O dilema de Maira, agora, saltava às alturas e confundia-se a tudo que aprendera até ali. Sabia que as pessoas velhas mereciam respeito de todos os seus sucessores. A história de cada um deles acumulava o montante de acontecimentos e experiências que transformara a civilização contemporânea num infinito de tecnologia altamente desenvolvida, ao longo de séculos, por pessoas que foram crianças, adolescentes, adultos e morreram como idosos. Sabia que, para poder usufruir do transporte coletivo, de roupas confortáveis e de seu inseparável celular, cada pessoa fez a sua parte, muito antes de seu nascimento. Cada um, do seu modo e conforme o papel que representava, foi colocando um tijolinho no muro que seria a concretização da construção do mundo em que vivia e da vida que levava. Alguns foram imigrantes, outros escravos. Muitos viveram como comerciantes, pessoas do lar, escritores, faxineiros, prostitutas, funcionários públicos, professores ou operários. Todos esses indivíduos, um a um, ergueram as pedras do mundo real de Maira. E ela, assim como todos que a cercam, descendiam de pessoas que envelheceram e morreram. Aqueles que dividem alguns minutos nas manhãs da cidade cinzenta, no mesmo viaduto, também serão velhos, talvez não tão breve, mas inevitavelmente, todos que conseguirem viver muitos anos, algum dia terão corpos tão frágeis e desvalorizados quanto àqueles dos velhos que discutiam defendendo, cada um, seu ponto de vista, de modo equivocado.

“Respeitem os mais velhos!” Essa frase Maira já tinha ouvido muitas vezes, pois os idosos reclamam sempre que possível sobre a falta de educação dos mais jovens. Tal recomendação não fazia mais tanto sentido, pois a garota nunca tinha ouvido nada sobre possíveis exceções. Achava estranho idosos poderem desrespeitar-se entre si, afinal, seriam eles detentores do direito de expressar suas opiniões por compartilhar uma mesma faixa etária? A eles seria permitido ultrapassar a linha imaginária que reprime os novos cidadãos de reclamar um direito, se este for de encontro à cultura e à história de uma pessoa cujo tempo de vida é escasso? Maira não tinha uma resposta. Se não ensinam tolerância na escola, será que fora dela é possível descobri-la? Embora incorreto e lhe causando certo asco ver aqueles pombos por perto, por alguns minutos do dia, parecia pouco significativo gerar um conflito se comparado ao bem estar que propiciaria a uma pessoa sem ocupação, num mundo em permanente evolução que pouco valoriza quem não tem nada de novo a oferecer para a sociedade. Ser útil para animais que desprezamos pode ter sido apenas o que restou para aquele ser humano sem nenhuma possibilidade de, por falta de tempo ou de capacidade física, fazer algo melhor. Se ela, uma menina de dezessete anos, seria capaz de relevar uma atitude quase infantil, por que alguém que já viveu tantas décadas a mais do que ela não conseguiria fazer o mesmo? Maira preferia usar o tijolo da intolerância e construir, nem que fosse apenas na sua imaginação, um mundo bem melhor do que aquele no qual estava vivendo em vez de arremessá-lo em alguém incapaz de se defender.

A menina voltou a focar sua atenção no local do desentendimento. Viu que os velhos caminhavam para lados opostos, de costas, um para o outro, cada um carregando um pouco de mágoa, rancor e inquestionável razão. Percebeu que os pombos tinham desaparecido do viaduto e sua audição voltava a captar os ruídos do trânsito e a conversa das pessoas, que pouco se importavam com o que tinha acontecido ali, instantes atrás. Os pombos, que representaram durante anos, o símbolo de paz entre homens, neste instante eram motivo de discórdia entre velhos. Se, de fato, pombos nunca atingiram a harmonia entre diferentes povos, agora, nem entre auto proclamados “iguais”. A paz não era um anseio desta geração. A harmonia não representava mais ninguém. O que representava a vida do mundo contemporâneo eram ratos com asas.

O Encarte

Os primeiros passos que iniciam meu dia acontecem sempre depois de um curto desabafo que lamenta o toque precoce do despertador. Todo o início de manhã, eu me pergunto se já está na hora de levantar, pois tenho uma sensação real de que recém fui dormir. Nenhuma relação com sintomas depressivos ou insônia, apenas um puro e natural sono humano. O ritual segue com meu andar arrastado em direção ao banheiro, acompanhado da Yoshi, minha gata siamesa que, ironicamente, fica muito feliz em me ver de pé. Enquanto eu sento no meu trono de rainha proletária, ela esfrega seu focinho na minha perna, pedindo comida e atenção; eu a afago ao mesmo tempo em que procuro algo para ler.


Gosto de ler no banheiro. Muitas pessoas aproveitam o tempo perdido no WC para ler no jornal as primeiras notícias do dia, ou, quem sabe, ler um livro de auto-ajuda. Eu prefiro folhetos e encartes de lojas. Ofertas de supermercado, de roupas e de eletrodomésticos são interessantes e, durante algum tempo, distraem-me carregando minhas baterias para o dia que começa. Hoje, eu avistei um encarte tipo revista da Polishop que atraiu muito minha atenção. Imediatamente eu comecei a folheá-lo, buscando ver naquelas páginas os produtos milagrosamente úteis para o dia-a-dia de qualquer adulto preguiçoso que eu só vejo nas propagandas mal dubladas da TV.

Iniciei meu dia imaginando como seria bom cozinhar alimentos nas grelhas George Foreman, ou como seria prático alisar meus cabelos com as pranchas emissoras de milhões de íons que protegem e dão brilho aos fios capilares. Eu estava hipnotizada. Digo isto porque eu já estava vendo o preço dos produtos e imaginando se as parcelas cabiam ou não no meu orçamento. Continuei minha lavagem cerebral de consumidora com tendências compulsivas quando cheguei à seção dos corpetes. Usar um modelador que corrige as imperfeições do corpo por R$69,00 era um sonho muito fácil de realizar. Poder usar aquela calça que não serve mais ou usar uma blusa mais justa sem sentir desconforto algum elevaria às alturas minha auto estima. É disso que preciso, pensei. E continuei pensando por algum tempo até que a Yoshi mordeu minha mão. Ela sempre faz isso quando quer chamar a atenção, e já fazia uns vinte minutos, pelo menos, que eu estava olhando aquele encarte; ela estava olhando para mim e implorando por ração. Deixei de lado, forçadamente, o corpete que causaria inveja na Barbie e fui alimentar o bicho. Vesti-me, saí para o trabalho e continuei com os pensamentos na Polishop.

A distração do início da manhã acompanhou-me por todo o expediente. Não pude evitar observar as barrigas que passavam por mim. Eu não via rostos ou corpos, que dirá pessoas. O que via eram suas barrigas e indagava-me se o corpete da Polishop poderia melhorar a aparência dos outros assim como eu imaginava que melhoraria a minha.

Ao voltar para casa, resolvi especular a minha imagem projetada diante dos olhos alheios. Peguei a revista e apresentei o produto ao meu marido. Não teria problemas em ir direto ao assunto com ele, mas resolvi iniciar o diálogo comentando sobre o bom resultado que traria o uso de um modelador corporal a minha postura, só para ver como a conversa seguiria. Justifiquei meu interesse pelo fato de estar sentindo-me um pouco curvada, provavelmente devido ao trabalho integral com computadores e tal. Ele, muito educadamente, parou de digitar um e-mail, virou-se para mim, pegou a revista e olhou o produto. “É, parece bom mesmo”. Processei a mensagem dele por infinitos segundos e quando percebi, ele havia retomado a digitação.

Lá estava eu, parada, diante dele, com o encarte nas mãos, pensando no que eu realmente esperava ouvir. Isto porque odiei o comentário inútil feito por ele. Se ele tivesse dito para eu comprar porque precisava do acessório, será que eu iria me magoar? É muito possível e provável que sim. Bem, se ele tivesse dito que, pelo fato de eu desejar fazer esta compra, então já devia ter avaliado a real utilidade do item, logo deveria comprá-lo. Péssima resposta! Ele podia ter dito que se eu já estivesse convencida, qualquer comentário ou sugestão que não coincidisse com o meu desejo seria prontamente rejeitado. Acho que ele me conhece bem. Quem sabe algo como: “Você está ótima, isso é bobagem!”... Pior ainda. Ele já me disse isso antes e eu não fui convencida, ele, pessoa inteligente que é, não ousaria tentar a mesma resposta comigo. Mas então, o que eu queria ouvir de fato?

Acho que não havia nada de objetivo que eu quisesse ouvir naquela situação. O que na verdade eu queria mesmo era não precisar do maldito corpete, pois seria reconhecer que estou acima do peso e que sou incapaz de recuperar a forma física de alguns anos atrás, comendo menos ou fazendo exercícios, como deveria fazer. Eu, várias dúvidas, o encarte, o corpete, o cartão de crédito, a barriguinha e a busca pelo impossível: a crise dos quase trinta anos deve ter chegado. Que desespero! Sim, deve ser isso porque eu estou sofrendo imensuravelmente uma dor que inexiste, que foi plantada na minha cabeça por uma campanha publicitária mercenária à base de mensagens subliminares que buscam pessoas com o meu perfil, prontas para caírem na isca da busca pela beleza eterna.

Eu não pude evitar: problematizei a situação a ponto de ocorrer, no meu pensamento, um conflito entre o que sou e o que eu desejo que os outros vejam. Uma incompatibilidade entre o que fui convencida a desejar e entre o que preciso de fato. A realidade é tão obvia que causaria graça se não fosse uma desgraça internalizada na minha mente. Sou uma mulher comum, saudável, de estatura mediana e muito longe de estar gorda como sugerem aquelas modelos do antes e depois do corpete. Mas o apelo comercial é irresistível e minha lucidez parece abalada. Como eu queria ser uma pessoa “normal” nesta sociedade consumista. Se eu fosse este ser alienado, eu já teria ido até a loja e, sem nenhum centavo, teria comprado o grill, a prancha para cabelos e o corpete, pago no cartão de crédito e pronto. Teria voltado para a casa orgulhosa das minhas sacolas recheadas de prazer, satisfação e status. E o melhor disso tudo, sem sentir culpa alguma.

Deixei o encarte de lado. Peguei a Yoshi no colo, apertei-a contra meu peito e murmurei algumas palavras suaves no ouvido dela. Este gato é o ser vivo que conheço mais verdadeiramente feliz com a vida que tem: ela pede comida sem vergonha alguma, come à vontade e sem peso na consciência, não precisa trabalhar, só desperta do sono quando quer, entende apenas o que é necessário para sua sobrevivência, não tem consciência nem crise existencial, é muito gorda e ninguém consegue resistir a ela. Que inveja!

Essência de um objeto sem valor

É tarde da noite e estou retornando para casa. O frio do inverno dá o primeiro sinal de aproximação quando, ao olhar pela janela do ônibus, vejo uma sacola sendo empurrada pelo vento, ora na calçada, ora sobre o asfalto. A sacola deve ter sido esquecida por alguém, ou talvez descartada propositalmente. Isso eu não sei ao certo. O que posso ter certeza é do que eu estou vendo: uma sacola plástica, de cor branca, quase transparente de tão fina, sem logotipo impresso, plainando de um lado para outro.

A utilidade da sacola plástica é inquestionável, pois necessitamos frequentemente deste objeto que tem forma de saco, com alças, no qual depositamos coisas diversas como alimentos, roupas, utensílios e cigarros, por exemplo. Usamos sacolas para transportar pertences de um lugar para outro, mas depois de atendido o objetivo de sua existência, as sacolas são descartadas cheias de restos desnecessários que chamamos de lixo. Ou esquecidas no meio da rua. Dizem que as sacolas, assim como o lixo, são mandadas para um aterro sanitário, o qual, ninguém conhece, e lá elas desaparecem.

A necessidade humana fez com que as sacolas plásticas fossem desenvolvidas e o consumismo global expandiu seu uso de modo acelerado. É possível que, em uma comunidade longe da nossa rua asfaltada, não haja energia elétrica ou saneamento básico, mas terão muitas sacolas espalhadas, dentro de casebres, no meio do lixo ou no terreno baldio onde as crianças brincam. Não acredito que os inventores das sacolas plásticas (à base de petróleo) pudessem prever a nocividade que elas causariam ao meio ambiente. Entopem bueiros, caem nos córregos e animais tentam alimentar-se delas ou ficam décadas em superfície terrestre sem entrar em decomposição. As lojas e supermercados não cobram nenhum centavo por elas e podemos pegar a quantidade que quisermos desde que compremos algo.

Em casa, retiramos seu conteúdo e a sacola, de longa vida útil, morre em sua utilidade ao nosso dia-a-dia, sendo amassada, jogada no lixo ou guardada dentro de outra sacola para ser usada em um momento oportuno. Normalmente para acondicionamento do nosso lixo que será recolhido e levado àquele aterro que já referi.

A gratuidade da sacola a torna sem valor algum depois de seu uso. Poderíamos ter apenas algumas sacolas e reaproveitarmos muitas vezes, mas nos são fornecidas tantas, sem custo adicional, motivo o qual ninguém se curva ao chão para recolher uma sacola da mesma forma que faria para pegar uma moeda.

As sacolas vazias não valem nada. No mesmo chão em que se encontra a sacola que avisto, dormem mendigos, caminham baratas, são atiradas bitucas de cigarro e corre água suja da chuva. O ser humano sem dinheiro não serve para nada assim como uma bituca cujo tabaco já foi fumado. A tolerância, o respeito e o direito à dignidade com que alguns tratam o mundo cada vez mais perde seu valor, assim como uma sacola que já atendeu ao seu propósito.

Uma sacola rasgada poderia não servir para nada, mas uma sacola inteira ainda serve. Mesmo que velha, poderia continuar sendo aproveitada, assim como um ser humano que ainda tem vida, que espera a chance para se mostrar digno de uma oportunidade.

O ônibus arrancou e eu perdi de vista a sacola. Creio que ela será empurrada na direção que o vento levar, cairá em um canal de esgoto ou córrego e será levada ao infinito. A sacola nada vale porque temos muitas outras sacolas novas, e muitas outras serão fabricadas. A sacola nada vale porque não fará falta alguma.

Sobrevida de luxo (vivendo no limite)

Todos os dias quando toca o despertador, Luisa imagina, sem muito entusiasmo, como será seu dia. Prepara o café da filha enquanto veste apressada seu uniforme. Deixa a menina na escola e avança vários sinais vermelhos, mas o relógio ainda é mais rápido. A mesa do trabalho continua do mesmo modo que deixou no dia anterior. Vários recados pedem retorno, há uma pilha de papeis para serem conferidos e uma planilha de custos solicitada no final do expediente já está a sua espera. Enquanto passa os olhos nos e-mails, o telefone começa a tocar. Luisa é acessora contábil há mais de dez anos e está acostumada com essa rotina: cobranças e afazeres que não terminam nunca, solicitações de última hora, cafezinhos, ligações que faz e recebe... Nem tudo pode ser planejado, principalmente os problemas pessoais que, por mais que se tente adiá-los, eles não agendam horário para visita.


Quando adolescente, Luisa praticava diversos esportes (patinação era o seu favorito), estudava o suficiente para ser aprovada, eventualmente namorava e saia com as amigas para dançar sempre que seu pai permitia. Todo verão, ao receber o boletim escolar, corria para casa, preparava a mochila e aproveitava ao máximo suas férias na praia ou no sítio dos avós. Luisa tinha uma vida invejável, pois tinha tudo o que uma pessoa desejava: bons pais, situação financeira estável, várias amigas e saúde perfeita. Nesta época, era possível equilibrar todos os deveres com as atividades que mais lhe traziam prazer.

Tão rápido chegou o dia da festa de formatura quanto ocorreu seu casamento. O futuro promissor agora era o presente. O primeiro trabalho não foi tão rentável quanto desejava, mas foi o suficiente para pagar as despesas básicas, pelo menos durante algum tempo. Queria uma casa em vez de um apartamento, um carro zero em vez de um razoavelmente rodado. Gostava de vestir roupas e sapatos de marca, assim como bolsas caras. Também não dispensava um bom perfume. Essas preferências foram tornando-se cada vez mais importantes e essenciais para a vida de Luisa, tendo sido necessário mudar de emprego algumas vezes, não em busca de um trabalho prazeroso, mas sim num trabalho rentável.

Os momentos de diversão e tranqüilidade foram sendo substituídos, silenciosamente, por longos e estafantes dias. Luisa, muitas vezes, chegava tarde em casa e, no dia seguinte, já estava diante do computador, respondendo e-mails. Mas precisava daquele emprego, ela pensava, pois tinha muitas contas e planos que só poderiam ser atingidos se ganhasse um bom salário. E isso ela já tinha alcançado. Luisa justificava o excesso de trabalho pelo elevado índice de desemprego (sua referência era a leitura do jornal de domingo com enormes chamadas apontando a quantidade de empresas falidas e o crescimento alarmante de desempregados), e acreditava poder garantir o emprego que tinha em função da sua dedicação exemplar. De fato, Luiza fora promovida e ganhou alguns prêmios por tanto empenho. Por outro lado, perdia momentos preciosos com seu marido e sua filha, esta, nascida no segundo ano de casamento. Acreditava que, apesar de não poder estar presente na rotina deles como deveria, conseguiria compensar este sacrifício comprando um novo jogo de sofás, uma TV de última geração ou um quarto novo para a filha. E a cada compra, outros objetivos de consumo eram estabelecidos. Planos de viagem ou simplesmente descanso não estavam na lista de metas a curto prazo.

No início de uma tarde quente de fevereiro, uma ligação interrompeu a reunião mensal da empresa. Não pôde conter as lágrimas quando recebeu a notícia do falecimento de seu marido em um acidente de trânsito. Conseguia lembrar dele, neste mesmo dia, durante o café da manhã, reclamando da rotina, referindo exaustão e alguma culpa por não ter tempo para nada. Talvez pudessem fazer uma viagem curta, desligar os celulares e o notebook, dizia ele. Descansar em um hotel e passear com a filha. Se algumas contas fossem adiadas, poderiam relaxar um pouco. Luiza não teve tempo de avisá-lo que receberia um cliente importante na próxima segunda-feira e que precisaria trabalhar no sábado e, talvez, também no domingo. Realmente, ela não iria trabalhar neste fim de semana.

Luisa estava presa numa corrida de ratos: acreditava que, por mais que trabalhasse, todo o dinheiro que ganhava não era o suficiente, nunca sobrava tempo para diversão ou simplesmente, sequer cogitava diversão sem dinheiro. E, nem a perda do marido lhe fez despertar para a vida restrita que levava. Na verdade, desde que passou a integrar o mundo como um indivíduo adulto e independente, Luisa vinha sobrevivendo no limite de suas capacidades físicas e intelectuais, trocando o necessário pelo supérfluo, tornando-se uma escrava do século XXI. Escrava do pânico do desemprego, e ao mesmo tempo, vítima de um modelo consumista que, implicitamente lhe motiva a consumir mais do que seu dinheiro pode comprar e mais do que é preciso para viver dignamente. Coisas que não precisa pagar para ter uma boa vida. Compartilhar do crescimento de sua filha, dividir o sofá vendo um filme com a família, passear no parque ou na beira do rio e tomar um banho de sol. Adotar um cachorro, almoçar com os parentes no fim de semana ou ouvir as músicas favoritas. Jogar futebol, ler um livro de conto de fadas ou ensinar a filha a amarrar os sapatos. Nada disso pode ser quantificado em moeda, e Luisa era incapaz de perceber o real valor de coisas simples e fundamentais. Coisas que seu dinheiro nunca conseguirá comprar porque não são vendidas em lojas.

Como convencer uma sociedade inteira de que todo desenvolvimento tecnológico, alimentos saudáveis e conforto existem para propiciar uma vida digna e com qualidade? Como acabar com a histeria que faz com que as pessoas queiram ter mais e mais, ao passo que nada significa outro ser humano não ter o que comer, o que vestir ou, inclusive, onde morar? Nesse ponto, não parece haver diferença significativa entre a vida limitada que Luisa e um mendigo qualquer levam. Exceto pelo fato de a forma restrita de Luisa levar sua vida ter sido uma escolha desnecessária. Uma escolha da sua geração.