domingo, 4 de julho de 2010

Dois velhos, bando de pombos e intolerância

“Os pombos são iguais aos ratos, só que com asas.” Maira ouviu esta expressão anos atrás e nunca mais esqueceu. Aprendeu que estes animais são transmissores de doenças diversas e devia ser este o motivo pelo qual geração do século XXI perdeu o encanto e glamour de épocas passadas. Uma das cenas que vinha a sua cabeça era o clássico vôo de centenas deles, ao mesmo tempo, quando casais aproximavam-se, em praças públicas, próximo a fontes d’água. As crianças adoravam pássaros e, para elas, era irresistível correr afoitamente, em direção aos pombos, que inevitavelmente tentam escapar dos pequenos humanos, criando ondas com o movimento de suas asas no ar. Lembrava ainda que o símbolo mundialmente conhecido para representação da paz era a imagem de uma pomba branca de asas abertas.


Maira aguardava o ônibus que a conduzia até a escola, todos os dias, embaixo de um viaduto, por volta das sete horas da manhã. Pessoas de lugares diferentes caminhavam de um lado para outro ou aguardavam ao seu redor, também, pela chegada de seus ônibus. E, entre um cigarro fumado, uma conversa ao celular ou o amontoado de veículos, uma senhora, muito velha, descia as escadas que davam acesso à calçada onde a estudante, com uma mochila enorme nas costas, de pernas entreabertas, encostada numa mureta, bocejava despreocupadamente.

A idosa, que Maira apelidou involuntariamente de Senhora dos Pombos, descia uma escada sem corrimão de uns quinze degraus, todas as manhãs. Com muita dificuldade, ela apoiava seu corpo cansado numa muleta, com um dos braços. No outro, carregava uma sacola plástica. Sempre que Maira avistava a muleta, não conseguia evitar um sentimento de angustia, pois a idosa mal conseguia manter-se de pé. Era atordoante vê-la com seus dois braços ocupados, arrastando-se, tremendo-se inteira. Cada passo que ela dava levavam longos segundos. Muito provavelmente para ambas: a Senhora dos Pombos porque buscava forças do fundo da alma para não cair; Maira porque acompanhava atentamente aqueles movimentos, torcendo para que ela não escorregasse e sofresse um acidente. Então, a Senhora dos Pombos abria a sacola e atirava aos pássaros a quirela que trazia consigo, ao lado de uma banca de flores, embaixo da ponte onde Maira e dezenas de pessoas esperavam suas conduções. Maira tentava evitar, mas era impossível não sentir muito desgosto pelo movimento dos pombos, batendo suas asas e espalhando poeira, penas e sujeira. Provavelmente com muitos fungos, bactérias e microorganismos que transmitem doenças. Aquelas doenças que falam na televisão e por este motivo é que pedem para que não alimentem pombos. Então, a pobre velha esboçava um sorriso, meio tímido, meio satisfeito. Após, seguia em frente, arrastando-se, muito lentamente, até a próxima praça onde continuaria a distribuição de quirela aos pombos, até desaparecer entre os transeuntes e a paisagem.

As pessoas permaneciam imóveis assistindo a cena sem proferir uma única palavra. Algumas esboçavam um olhar de condenação semelhante ao de Maira, mas nada diziam. Sabia que a situação não era tão simples de ser resolvida: a velha aparentava ter, pelo menos, uns noventa anos. Estava visivelmente debilitada e abandonada (nunca tinha visto a infeliz conversar com alguém, muito menos, estar acompanhada). Sua principal e talvez única ocupação fosse a de alimentar estes bichos, diariamente, um compromisso sem retorno financeiro para o qual se dedicava, provavelmente, apenas para sentir alguma utilidade como ser vivo sem ocupação definida. Então, mais do que a possibilidade de transmissão de doenças, Maira preferia resguardar-se e nada comentar, em respeito a uma pessoa que não devia valer nada para ninguém além dos pombos do Centro gelado de Porto Alegre. Não tinha coragem de dizer uma única palavra que condenasse o ato da frágil idosa, por mais isso que fosse de encontro às recomendações básicas de saúde e, apesar de Maira saber ter plena razão em defender um direito que julgava ser seu, mesmo assim, hesitava. Sentiria muita tristeza em tirar o quase nada do que sobrou àquela velha. Na realidade, sentia uma profunda e sincera pena da Senhora dos Pombos. “O ônibus chegará logo e isso deixará, em breve, de ser uma preocupação nos meus pensamentos.”, afirmava a estudante para si mesma. Outra manhã começava e, a alimentação dos pombos se repetia, como um ritual sagrado a ser cumprido. Sabia a garota que nada de novo, novamente, aconteceria. A velha debilitada, os passos fracos, a escada alta, a muleta desgastada, a quirela esfarelada, a centena de pombos sujos, o ônibus chega em seguida: Fim! Com o olhar Maira seguia a Senhora dos Pombos quando percebeu um senhor, logo atrás da idosa. Ele também sugeria, pela aparência física, ter uma idade avançada, notável pela pele enrugada do rosto e pelos cabelos bem brancos. Assim como Maira, o velho acompanhava os lentos movimentos da Senhora dos Pombos. Ele vestia um longo casaco de lã escuro e de braços cruzados, prestava muita atenção nos movimentos que aconteciam. A idosa atirou o milho quebrado aos pássaros e venceu, mais uma vez, a probabilidade de queda iminente da escada ao atingir vitoriosamente o chão firme. Enquanto isso, o bando de pombos grunhiam, ciscavam e comiam tranquilamente o farelo. Num piscar de olhos, Maira sentiu seu coração pular quando os pássaros, repentinamente, começaram a se debater, tipo reação em cadeia, e com o barulho forte das asas que batiam tentando projetar vôo ao alto dos prédios, que se misturava ao trânsito e ecoava no concreto dos edifícios e do viaduto onde se encontrava.

Todos os movimentos e olhares das pessoas embaixo daquele viaduto tinham a mesma direção. O velho, se debatia, resmungando alguma coisa e, movimentando braços e pernas, espantava os ratos de asas, que se misturavam aos veículos e a gente que passava ou estava ali, parada.

A Senhora dos Pombos gritava ao velho alguma coisa que Maira entendia ser ruim, pelos gestos e expressões faciais de ódio e raiva que via em seus rostos, embora não conseguisse compreender nenhuma palavra. Ele, do alto da escada e de sua razão, respondia outras grosserias.

O dilema de Maira, agora, saltava às alturas e confundia-se a tudo que aprendera até ali. Sabia que as pessoas velhas mereciam respeito de todos os seus sucessores. A história de cada um deles acumulava o montante de acontecimentos e experiências que transformara a civilização contemporânea num infinito de tecnologia altamente desenvolvida, ao longo de séculos, por pessoas que foram crianças, adolescentes, adultos e morreram como idosos. Sabia que, para poder usufruir do transporte coletivo, de roupas confortáveis e de seu inseparável celular, cada pessoa fez a sua parte, muito antes de seu nascimento. Cada um, do seu modo e conforme o papel que representava, foi colocando um tijolinho no muro que seria a concretização da construção do mundo em que vivia e da vida que levava. Alguns foram imigrantes, outros escravos. Muitos viveram como comerciantes, pessoas do lar, escritores, faxineiros, prostitutas, funcionários públicos, professores ou operários. Todos esses indivíduos, um a um, ergueram as pedras do mundo real de Maira. E ela, assim como todos que a cercam, descendiam de pessoas que envelheceram e morreram. Aqueles que dividem alguns minutos nas manhãs da cidade cinzenta, no mesmo viaduto, também serão velhos, talvez não tão breve, mas inevitavelmente, todos que conseguirem viver muitos anos, algum dia terão corpos tão frágeis e desvalorizados quanto àqueles dos velhos que discutiam defendendo, cada um, seu ponto de vista, de modo equivocado.

“Respeitem os mais velhos!” Essa frase Maira já tinha ouvido muitas vezes, pois os idosos reclamam sempre que possível sobre a falta de educação dos mais jovens. Tal recomendação não fazia mais tanto sentido, pois a garota nunca tinha ouvido nada sobre possíveis exceções. Achava estranho idosos poderem desrespeitar-se entre si, afinal, seriam eles detentores do direito de expressar suas opiniões por compartilhar uma mesma faixa etária? A eles seria permitido ultrapassar a linha imaginária que reprime os novos cidadãos de reclamar um direito, se este for de encontro à cultura e à história de uma pessoa cujo tempo de vida é escasso? Maira não tinha uma resposta. Se não ensinam tolerância na escola, será que fora dela é possível descobri-la? Embora incorreto e lhe causando certo asco ver aqueles pombos por perto, por alguns minutos do dia, parecia pouco significativo gerar um conflito se comparado ao bem estar que propiciaria a uma pessoa sem ocupação, num mundo em permanente evolução que pouco valoriza quem não tem nada de novo a oferecer para a sociedade. Ser útil para animais que desprezamos pode ter sido apenas o que restou para aquele ser humano sem nenhuma possibilidade de, por falta de tempo ou de capacidade física, fazer algo melhor. Se ela, uma menina de dezessete anos, seria capaz de relevar uma atitude quase infantil, por que alguém que já viveu tantas décadas a mais do que ela não conseguiria fazer o mesmo? Maira preferia usar o tijolo da intolerância e construir, nem que fosse apenas na sua imaginação, um mundo bem melhor do que aquele no qual estava vivendo em vez de arremessá-lo em alguém incapaz de se defender.

A menina voltou a focar sua atenção no local do desentendimento. Viu que os velhos caminhavam para lados opostos, de costas, um para o outro, cada um carregando um pouco de mágoa, rancor e inquestionável razão. Percebeu que os pombos tinham desaparecido do viaduto e sua audição voltava a captar os ruídos do trânsito e a conversa das pessoas, que pouco se importavam com o que tinha acontecido ali, instantes atrás. Os pombos, que representaram durante anos, o símbolo de paz entre homens, neste instante eram motivo de discórdia entre velhos. Se, de fato, pombos nunca atingiram a harmonia entre diferentes povos, agora, nem entre auto proclamados “iguais”. A paz não era um anseio desta geração. A harmonia não representava mais ninguém. O que representava a vida do mundo contemporâneo eram ratos com asas.

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